Democracia


O “Fim da História”, de Fukuyama, vinte anos depois: o que ficou?

Por Paulo Roberto de Almeida 

(Doutor em ciências sociais pela Universidade de Bruxelas em 1984)

1. O que restou, vinte anos depois, da tese controversa de Fukuyama? 
No verão de 1989, a revista americana National Interest publicava um ensaio teórico – mais exatamente de filosofia da História – do intelectual nipo-americano Francis Fukuyama sobre os sinais – até então simplesmente anunciadores – do fim da Guerra Fria, cujo título estava destinado a deslanchar um debate ainda hoje controverso: “The End of History?”. Vinte anos depois, em vista das muitas críticas feitas naquela conjuntura – e ainda hoje – às principais teses do autor, vale a pena retomar seus principais argumentos e verificar se eles ainda conservam alguma validade para nossos tempos, que poderiam ser considerados como de pós-Guerra Fria, mas que alguns interpretam, ou consideram efetivamente, como de volta à Guerra Fria, ainda que sob novas modalidades (com uma Rússia singularmente diminuída e uma China hesitante em se posicionar como contendor estratégico dos Estados Unidos).

Antes, contudo, de ingressar numa descrição linear desses argumentos, qualquer que seja sua validade relativa ou absoluta para o tema que nos interessa – qual seja, o da natureza das opções abertas aos países em termos de reforma e desenvolvimento paralelos do sistema econômico e do regime político, que Fukuyama identificava com a redução dessas opções à democracia de mercado – cabe chamar a atenção para uma peculiaridade geralmente descurada no debate anterior (e talvez atual) sobre a validade das teses de Fukuyama, sobretudo por aqueles que recusavam, in limine, a essência mesma do argumento do autor. Esta peculiaridade tem a ver, basicamente, com um simples sinal diacrítico: o ponto de interrogação ao final do título, geralmente ignorado pelos críticos das teses de Fukuyama, e provavelmente também por aqueles que apóiam, em grande medida, o sentido dos seus argumentos. Ou seja, Fukuyama não fazia uma afirmação peremptória, mas levantava uma hipótese, a do final presumido da história, numa análise de corte essencialmente conceitual, ainda que fortemente embasada nos fatos históricos, e nunca pretendeu formular uma sentença de caráter terminativo, indicando um “congelamento” das formas possíveis de organização social, econômica e política. O interrogante básico de seu argumento tem a ver com a possibilidade de alternativas credíveis às democracias liberais de mercado, ponto. 

O ponto de interrogação, por si só, tem o poder de desmantelar boa parte das críticas superficiais, embora ele não elimine uma discussão responsável sobre a essência de sua tese, que caberia discutir, após o resumo inicial de seus argumentos. A tese – vale a pena resumir desde o início – tem a ver com o caráter incontornável da democracia de mercado como sendo uma espécie de ‘horizonte insuperável de nossa época’, como poderia argumentar – mas a propósito do marxismo – Jean Paul Sartre, um dos estudantes, junto com Raymond Aron, da tese original de Hegel, através de Alexandre Kojève. 

2. O que Fukuyama de fato escreveu? 
A tese principal era a de que, após um século de emergência e declínio dos regimes fascistas e comunistas, de enormes turbulências políticas e de crises econômicas, de contestação intelectual e prática ao liberalismo econômico e político de corte ocidental, o mundo estava retornando ao seu ponto inicial, qual seja o do triunfo inquestionável – an unabashed victory, nas palavras de Fukuyama – do sistema liberal ocidental. Segundo ele, tratava-se de um triunfo da “idéia ocidental”, tornada evidente pela exaustão das alternativas viáveis ao liberalismo ocidental. Esse triunfo era mostrado, em primeiro lugar, pela disseminação da cultura consumista ocidental nos dois países mais importantes do ‘mundo alternativo’, a China e a União Soviética (cabe registrar, imediatamente, que em nenhum momento de sua análise, Fukuyama esperava a dissolução imediata do regime monocrático e o rápido desaparecimento do próprio império soviético). Como ele mesmo observou logo ao início do artigo, “a vitória do liberalismo ocorreu primariamente no domínio das idéias, ou da consciência, e é ainda incompleto do mundo real ou material”. 

Mas como afirmou, logo em seguida, o próprio Fukuyama, “há razões poderosas para acreditar que é essa idéia que irá governar o mundo real no longo prazo” (ênfase original). Se aceitarmos o conhecido aforismo keynesiano, segundo o qual, a longo prazo, todos estaremos mortos, essa afirmação do cientista político americano o deixa inteiramente à vontade para acomodar quaisquer desenvolvimentos políticos e econômicos imediatos e de médio prazo, retirando sua responsabilidade sobre a validade de sua tese na perspectiva do cenário de curto prazo. Esse fato pode transformar sua tese principal no equivalente acadêmico dessas previsões de cartomantes ou adivinhos, que deixam a um futuro indefinido a realização de seus exercícios de futurologia amadora, mas caberia aceitar, em princípio, as premissas de Fukuyama como uma proposta passível de discussão apoiada em metodologia rigorosa. 

Em todo caso, seu texto engajava, a partir daí, uma discussão em torno das questões teóricas relativas à natureza da mudança histórica, processo que ele remonta a Hegel e Marx, sobretudo o primeiro, formulador da teoria do progresso na história universal.[2] O fim da história, na concepção hegeliana (tal como interpretada por Kojève), estava identificado com a afirmação dos princípios do direito universal à liberdade e da legitimação de um sistema de governo apenas com o consentimento e a aprovação explícita dos governados, o que foi chamado de “Estado homogêneo universal”. Uma vez que todas as contradições anteriores já teriam sido resolvidas com a aceitação e por meio do estabelecimento desse Estado – e como, para Hegel, o mundo real deveria corresponder ao mundo ideal, pelo menos aquele que figurava na cabeça do filósofo –, então não existiriam mais espaços para conflitos de maior escopo em torno da organização política desse Estado, restando apenas encaminhar e resolver os pequenos problemas da atividade econômica e da política corrente. O mundo se converteria, então, numa simples “administração das coisas”, segundo a frase de Engels para representar a situação das sociedades humanas na fase pós-socialista, quando supostamente já não mais existiriam a exploração dos trabalhadores e a dominação política sobre os homens. 

Obviamente, Hegel não era tão simplista como a exposição acima poderia sugerir, sobretudo com esse ‘idealismo filosófico’ de equalizar o mundo ideal ao mundo real. Para o filósofo alemão – mais especificamente prussiano, talvez –, as contradições existentes no mundo real se formam a partir de um conflito de idéias, ou seja, de diferentes concepções sobre como deveria ser organizado o mundo real da política e da economia. As distinções entre um mundo e outro seriam apenas aparentes, posto que as idéias que encontravam abrigo na consciência dos homens acabariam por se tornar necessidades do mundo real, fechando assim o ciclo de realização da idéia universal.[3]

A consequência prática dessa concepção seria a de que, posto que as democracias de mercado provaram sua capacidade de não apenas resistir aos desafios colocados por crises econômicas e por guerras devastadoras, mas também de atender aos requerimentos suscetíveis de trazer prosperidade e riqueza a todos os países que aderiram a seus princípios organizadores, elas estavam habilitadas a cumprir seu mandato hegeliano de realizar o ‘Estado universal homogêneo’, fechando, assim, um ciclo completo da história. À pergunta – sempre o ponto de interrogação – de saber se chegamos ao fim da história, deve-se agregar esta outra, sobre se existem contradições tão fundamentais na vida humana que não possam ser encaminhadas através de qualquer outra forma alternativa de estrutura político-econômica que não o liberalismo moderno de mercado. Não se trata de saber o que pode ocorrer, em termos práticos, na Albânia ou em Burkina Faso, mas o que importa, realmente, em termos de ‘herança ideológica comum da humanidade’. 

Como indica corretamente Fukuyama, no decorrer do século 20, foram dois os desafios mais importantes ao liberalismo político e econômico: o fascismo e o comunismo. Ambos poderiam, na verdade, ser abrigados sob o conceito comum de regimes anti- ou aliberais, no terreno político, e sob o conceito de sistemas coletivistas no domínio econômico (embora o comunismo, ou o socialismo soviético, tenha sido muito mais ‘coletivista’ do que o fascismo). Tendo este último sido enterrado sob os escombros da Segunda Guerra Mundial, restava o comunismo, que, no momento em que Fukuyama redigia seu panfleto hegeliano, ainda não tinha sido enterrado de vez. Essa recordação é importante: afinal de contas, na segunda metade de 1988 e o início de 1989, quando Fukuyama redigiu seu ensaio especulativo, Gorbachev ainda se debatia para implementar sua glasnost e sua perestroika, destinadas, como se sabe, não a enterrar o comunismo, mas a introduzir elementos de mercado em seu funcionamento efetivo, de maneira que a nova NEP sob o comando de um reformista do Partido Comunista pudesse assegurar a continuidade do sistema e do império; por outro lado, a China de Deng Xiao-Ping exibia, naquela conjuntura, apenas 20% de sistema de mercado como locus da produção global do país e, ao que se sabe, a plutocracia do PCC pretende, até hoje, construir um fantasmagórico “socialismo de mercado com características chinesas”.[4]

Fukuyama não deixa de ironizar o fato de que entre os maiores opositores do marxismo e das economias coletivistas nos países ocidentais estão os ‘perfeitos materialistas’ de Wall Street, que cultivam o mais acirrado anticomunismo e não deixam de ser defensores de princípios similares aos dos marxistas. Como ele escreve: “A inclinação materialista do pensamento moderno é uma característica não apenas do pessoal da Esquerda, que podem ser simpáticos ao Marxismo, mas de muitos antimarxistas passionais também. De fato, existe na direita o que se poderia rotular de escola do Wall Street Journal do materialismo determinista, que relativiza a importância da ideologia e da cultura e vê o homem como sendo essencialmente um indivíduo racional, maximizador dos lucros. É precisamente esse tipo de indivíduo e a sua busca de incentivos materiais que aparece como a base da vida econômica nos manuais de economia.” 

Não se trata de mera ironia gratuita, pois como lembra em seguida Fukuyama, é essa mesma escola do materialismo determinista de Wall Street Journal que aponta para os notáveis sucessos de países dinâmicos da Ásia nas últimas décadas como uma evidência da viabilidade da economia de mercados livres, com a implicação decorrente de que todas as sociedades poderiam conhecer desenvolvimentos similares se elas simplesmente deixassem as pessoas perseguirem livremente seus interesses materiais. O próprio Fukuyama aponta para os elementos “ideais” presentes nessa transformação e na ulterior transição do socialismo ao capitalismo, ao dizer que os dirigentes dessas fracassadas experiências do socialismo real já tinham constatado há muito tempo que o sistema simplesmente não funcionava. Registre-se que Fukuyama escrevia antes que o socialismo implodisse de fato e que os chineses formalizassem sua receita original de transição do socialismo ao capitalismo, com as justificativas teóricas disponíveis, o que foi feito apenas a partir de 1991-92. 

3. Fukuyama tinha razão? 
Na terceira parte de seu ensaio, Fukuyama se pergunta se atingimos, de fato, o fim da história. “Existem, em outras palavras, quaisquer ‘contradições’ fundamentais na vida humana que não possam ser resolvidas no contexto do liberalismo moderno, e que poderiam ser solucionadas por uma estrutura político-econômica alternativa? Se aceitarmos as premissas idealistas expostas acima, precisaremos buscar uma resposta a esta questão no terreno da ideologia e da consciência.” Seria verdade essa firmação de Fukuyama, em sua época e ainda hoje? 

A proposta de Fukuyama sobre o “fim da História”, apresentada com um suporte hegeliano aparentemente consistente, é de tão fácil aceitação, do ponto de vista intelectual, quanto desprovida de maior importância explicativa, do ponto de vista prático. Em sua roupagem puramente acadêmica, ela oferece um excelente terreno de manobras para divagações ‘inocentes’ sobre o “triunfo definitivo” do liberalismo ocidental. Quando se trata, no entanto, de – parafraseando a décima-primeira tese de Marx sobre Feuerbach – não mais “interpretar” o mundo, simplesmente, mas de “transformá-lo”, verdadeiramente, essa nova tese ‘jovem hegeliana’ perde-se em seu próprio ‘pântano’ ideológico. 

Em outros termos, se a História realmente aproxima-se de seu final filosófico — isto é, se a Razão exauriu as possibilidades conceituais de explicar o Real — e se a organização formal do mundo material confunde-se com sua atual configuração histórica, isto não quer dizer que a história esteja perto de seu final concreto — isto é, que o Real tenha esgotado de vez as possibilidades práticas de ordenar o mundo em conformidade com o reino da Razão — ou que a organização material do mundo potencial esteja limitada a um determinado sistema sócio-político. Sem dúvida alguma, muito ainda resta a ser feito para que o homem comum possa trabalhar pela manhã, pescar na hora do almoço e dedicar-se à filosofia pela tarde, como queria o Marx hegeliano da juventude. Em todo caso, a maior parte da humanidade não foi ainda advertida sobre essas novas possibilidades de épanouissement individuel. 

Para ser honesto com Fukuyama, sua tese é basicamente correta em sua aparente simplicidade propositiva: não há mais contestação ideológica possível – de origem ‘socialista’, entenda-se bem – à hegemonia filosófica, política e econômica do liberalismo ocidental. Este último emergiu claramente vencedor das contendas ideológicas do período de Guerra Fria; mas não apenas ideológicas, as práticas também: com efeito, o socialismo não foi ‘derrotado’ pelo capitalismo, de qualquer forma concreta e visível, ele simplesmente implodiu pela sua absoluta incapacidade de produzir, não mísseis nucleares, mas meias de nylon. Parodiando o autor da Critique de la Raison Dialectique, até se poderia adivinhar a brincadeira outre-tombe que, a propósito do liberalismo ocidental, Aron dirigiria contra Sartre: à diferença do marxismo, ela, sim, a economia liberal de mercado, teria se tornado o “horizonte insuperável de nossa época”. 

É altamente improvável, porém, que Aron concordasse com a previsão de Fukuyama sobre os états d’âme associados a um liberalismo fin-de-siècle: uma clara época de tédio (a very sad time, prospects of centuries of boredom, como diz Fukuyama), marcada pela preocupação quase que exclusiva com exigências materiais, sem as experiências ‘heróicas’ ou ‘excitantes’ que todo período maniqueísta sabe suscitar. Relativamente pessimista – dotado de um scepticisme serein, preferiria dizer ele mesmo – no que se refere às realidades dos Estados e dos sistemas de poder existentes, Aron não alimentaria nenhuma ilusão quanto a que o alegre ‘enterro do socialismo’ operado na última década do século 20 pudesse conduzir a uma ‘primavera das democracias’ razoavelmente estável ou a uma versão atualizada da ‘paz universal’ prometida em meados do século 18 por um prelado francês, e um pouco mais tarde pelo próprio Kant.[5]

Em todo caso, a anarquia política característica da ordem inter-estatal contemporânea, bem como os enormes diferenciais de recursos e de poder entre os Estados, no quadro de um sistema internacional ainda fortemente hierarquizado, parecem garantir um “fim da História” bem movimentado para os atores que continuarem a participar desse cenário ‘pós-socialista’. De fato, não é credível que disputas hegemônicas e conflitos de poder venham a termo apenas porque a superestrutura ideológica do sistema mundial foi transformada pelo súbito desaparecimento de um dos seus pólos, uma ‘invenção’ mal concebida de engenharia social, mais mal implementada ainda, que num certo momento fez ‘tilt’, deu dois suspiros e depois morreu, sem choro e sem vela (bem, ocorreram, sim, algumas lágrimas e condolências sentidas de algumas viúvas do comunismo e de órfãos do socialismo, aqui mesmo no Brasil). 

Entendamo-nos bem: Aron certamente não se importaria em que os aléas de l’Histoire conduzissem a Humanidade a um fin-de-siècle bem pouco aroniano, isto é, livre de uma vez por todas da terrível ameaça do holocausto nuclear. Mas, para ele, a superação da Machtpolitik da era bipolar não significava em absoluto que as relações internacionais contemporâneas – e presumivelmente as do futuro próximo – passassem a ser desprovidas, mesmo num cenário multipolar, de todo e qualquer elemento de ‘política de poder’. A despeito da crescente afirmação do primado do direito internacional – ou seja, da ‘força da razão’ — a Machtpolitik continuaria a existir por largo tempo ainda, inclusive em seus aspectos mais elementares de exercício puro e simples da ‘razão da força’. 

A diferença está, provavelmente, em que, no cenário otimista traçado por Fukuyama, o desafio ideológico representado pelo socialismo – the socialist alternative, em suas palavras – simplesmente deixou de existir. Mesmo imaginando-se (no l’au-delà) o ‘sorriso cético’ de Raymond Aron – que, todavia, nunca reduziu o confronto inter-imperial a um mero enfrentamento ideológico –, não podemos descartar, de plano, a versão revista e melhorada por Fukuyama da tese de Bell sobre o ‘fim das ideologias’. Para fins do argumento em espécie, isto é, para a conformação de nosso ‘retorno ao futuro’ do socialismo, a differentia specifica representada pelo afastamento do concorrente ideológico pode ser funcionalmente explicativa para justificar um futuro “estado universal homogêneo” ao estilo hegeliano. 

Numa época em os modernos ideólogos identificaram, repetidas vezes, sinais de “fim das ideologias” (ou, agora, do próprio “fim da História”), perde-se facilmente a visão de como o elemento ideológico influenciou a construção do mundo contemporâneo. O Ocidente em geral, nos últimos setenta anos, e a Europa em particular, nos últimos quarenta anos, viveram sob o signo das relações Leste-Oeste. Sua face mais ameaçadora produziu o que, acertadamente, ficou identificado sob o conceito de “guerra fria”. Depois de pelo menos quatro décadas de livre circulação, essa verdadeira hantise estratégico-ideológica parece agora ter-se finalmente encaminhado para o museu das antiguidades, ao lado do machado de bronze e da roca de fiar (como diria Engels). 

A Guerra Fria entre as duas superpotências, que marcou indelevelmente toda a história da segunda metade do século 20, não foi, provavelmente, apenas um produto de ideologias conflitantes. Mas, foram certamente as racionalizações políticas e militares construídas a partir das “intenções malévolas” do concorrente estratégico que lhe deram uma dimensão jamais vista nas antigas disputas hegemônicas (seja entre os impérios da antiguidade clássica, seja entre os Estados-nacionais da era moderna). Mais que tudo, foi a crença ideológica – quase religiosa, podemos dizer – em uma missão histórica especificamente socialista, qual seja, a de enterrar não apenas o inimigo burguês, mas o próprio modo de produção capitalista, que exacerbou tremendamente o ‘conflito ideológico global’ (como diriam os generais da geopolítica), levando-o, em algumas ocasiões, ao limiar da escalada nuclear. 

O afastamento da “espoleta ideológica” – a iskra leninista – do socialismo, antecipada pela tese sobre o “fim da História”, significaria agora que o mundo estaria encaminhando-se, finalmente, para uma era de paz (ou pelo menos de não-guerra) ? Descartando-se a permanência dos chamados conflitos regionais e das guerras locais conduzidas por motivos étnicos ou territoriais, é provável que sim, mas, isto tem pouco a ver com o fim do desafio socialista: o abafamento das paixões bélicas nas sociedades contemporâneas é mais o resultado de mudanças substantivas na ordem econômica global do que devido a motivos de natureza política ou ideológica (a falência do socialismo, finalmente, não significou apenas a bancarrota de uma idéia, mas o esboroamento de todo um ‘modo de produção’). 

Com efeito, querer responsabilizar a ideologia socialista pelas “guerras de religião” contemporâneas (algo de que não se pode acusar Fukuyama) nada mais significa senão uma racionalização filosófico-sociológica a posteriori pouco condizente com uma realidade histórica muito mais complexa que todas as vãs “filosofias da história”, mesmo em versão supostamente hegeliana. Num século marcado pelas ideologias, o socialismo não foi, de longe, a mais belicista ou a mais agressiva delas, perdendo para o fascismo em várias frentes. 

Um exame imparcial da história do período anterior a 1945, mostraria que não foi a oposição entre,’– conceda-se-lhes, cum grano salis, o epíteto de marxistas – que provocou o quadro de instabilidade política e militar durante a primeira metade do século 20 e que precipitou os conflitos que retirariam definitivamente da Europa as alavancas do poder mundial. Ao contrário, foram os conflitos de natureza quase “feudal” – como diria o historiador Arno Mayer[6] –, latentes no continente europeu desde finais do século 19, que permitiram o surgimento do poder socialista e, com ele, do conflito ideológico global. Basta com mencionar a ação agressiva das novas potências da mittelEuropa para escapar ao cerco das velhas potências imperiais, ou o papel das ideologias fascistas do “espaço vital” e da “regeneração nacional” no entre-guerras, para dar a exata dimensão da responsabilidade do socialismo no caótico quadro político-militar da modernidade. A ‘ameaça socialista’ sempre foi menor do que se imaginou e poderia mesmo ter sido simplesmente irrelevante, para todos os efeitos práticos, não fosse por um desses imponderáveis do acaso – os famosos ifs da história virtual – que costumam esconder-se nas já mencionadas dobras da História. 

Não se deve, com efeito, esquecer que o surgimento da dimensão Leste-Oeste no contexto político europeu é virtualmente o resultado prático de um pequeno, mas fecundo, ‘acidente’ histórico, desencadeado involuntariamente por um dos beligerantes durante a Primeira Guerra Mundial: o retorno à Rússia de um punhado de bolcheviques exilados, praticamente desanimados pela ausência de perspectivas revolucionárias em sua terra natal. O voluntarismo oportunista da diplomacia do Kaiser, que buscava apenas provocar um pequeno “tremor” político na frente de guerra oriental, podendo servir a interesses militares imediatos, transformou-se porém em cataclismo histórico de proporções inimagináveis, dando nascimento aliás ao próprio conceito de relações Leste-Oeste. 

Uma vez instalado o novo poder bolchevique, as diversas intervenções das potências ocidentais em território russo (ou soviético) contribuíram mais para alimentar a oposição ideológica irredutível com os países capitalistas do que uma suposta “luta de classes” em escala internacional. No segundo pós-guerra, igualmente, a busca constante do rompimento do ‘cerco imperialista’ era mais ditada por considerações de natureza estratégica (segurança militar) do que por reflexos de princípios ideológicos. Para Stalin, por exemplo, a razão de Estado sempre teve preeminência sobre o ‘internacionalismo proletário’, este último invariavelmente servindo de disfarce ideológico aos interesses do Estado soviético. Exatamente por causa da a razão de Estado, que prevalece sobre as ideologias, não existe um “fim da história”, como o próprio Fukuyama reconhece ao final de seu ensaio. 

4. Do fim da História ao fim da Geografia 
Seja qual for o destino futuro da ‘ideologia socialista’, seu itinerário terá pouco a ver com o ocaso da História. Na verdade, estamos assistindo, não tanto ao fim da História, quanto, mais propriamente, aos limites da Geografia, a partir da crescente globalização dos circuitos produtivos e da interdependência acentuada das economias desenvolvidas. O próprio Fukuyama observou que o desafio da alternativa socialista nunca esteve, realmente, no terreno das possibilidades concretas no Atlântico norte, região de capitalismos bem estabelecidos e de democracias de mercado relativamente estáveis – com a exceção, talvez, da periferia mediterrânea – e que o sucesso dessa alternativa foi, na verdade, sustentado por experiências em sua periferia: na Ásia, na África e numa simples ilha da América Latina. 

De fato, foi na Ásia onde o socialismo conseguiu alguma penetração duradoura – hoje largamente simbólica – mas é nas universidades públicas da América Latina – em grande medida medíocres em termos de produção humanística significativa – onde o marxismo esclerosado ainda consegue uma ridícula sobrevivência, embora desprovido de qualquer inovação filosófica ou de melhorias significativas nas suas propostas econômicas relevantes.[7] Não se imagine, contudo, que o disfarce ‘socialista’ da liderança plutocrática chinesa constitua um sobrevivência qualquer da ideologia marxista, ou que ela represente um desafio fundamental ao capitalismo real: os líderes chineses, desde Deng Xiao-Ping, perceberam que a sobrevivência do ‘comunismo’ na China só se daria por obra e graça do capitalismo, e à sua construção eles vem se dedicando com extraordinário esforço e o zelo engajado dos verdadeiros crentes, os ‘novos cristãos’ da verdadeira fé nas virtudes do regime de mercados. 

O que está em causa, obviamente, não é o futuro, sequer o destino do socialismo, mas pura e simplesmente o poder político nas mãos dos novos mandarins chineses, uma nova classe basicamente similar à antiga nomenklatura soviética, mas que foi esperta o bastante para construir um sistema de dominação que transforma os novos capitalistas em seus aliados permanentes, posto que, como ensina Fernand Braudel, o capitalismo só triunfa, de verdade, quando ele transforma em Estado, quando ele é o Estado.[8] Alguns observadores já chamaram esse novo sistema de “corporativismo leninista”,[9] mas o nome, na verdade, importa menos do que a realidade tangível do novo sistema chinês: esse sistema é essencialmente capitalista, mesmo se ele não é democrático e muito menos liberal, no sentido político da palavra; mas as políticas econômicas mobilizadas são, no seu sentido básico, de corte liberal. Aliás, em vista da crise econômica mundial de 2008-2009, vários outros observadores se perguntaram se, depois do ‘comunismo’ chinês ter sido salvo pelo capitalismo, não seria ele agora, pela pujança da demanda e da produção manufatureira de alcance global, a salvar o capitalismo. Ao que se sabe, o ensaio de Fukuyama não recebeu uma edição revista e atualizada para poder capturar esta última ‘astúcia da Razão’, ou essa “artimanha da História”, uma ironia suprema que seria bem recebida por Marx, mas certamente não por Lênin e seguidores. 

5. Existem opções aos órfãos do socialismo? 
Não é seguro que uma alternativa credível em termos de sistema econômico e político se apresente nos palcos da História, ainda que as viúvas do comunismo e os deserdados da causa mantenham uma esperança quase religiosa – que se renova febrilmente a cada crise do capitalismo – de que isso seja possível em suas vidas terrenas. O mais provável é que as últimas ‘terras incógnitas’ do capitalismo realmente existente – que são alguns tresloucados ‘socialistas do século 21’, perdidos em seus próprios desastres econômicos, e um punhado mais numeroso de satrapias africanas, mas que não constituem Estados, no sentido hegeliano do termo – se juntem à locomotiva da interdependência econômica mundial em algum momento deste século: embora atrasados, eles também serão bem-vindos, mesmo que tenham de desempenhar funções subalternas no trem do capitalismo, até sua própria qualificação produtiva. 

Alternativas políticas à democracia liberal sempre podem existir, posto que as molas do poder respondem em grande medida mais às paixões humanas – o que os dramaturgos gregos, Shakespeare e Maquiavel já sabiam desde sempre – do que aos mecanismos de produção e de distribuição de ativos reais, e isto vem sendo provado a cada instante da história mundial. Não se imagina, porém, que o ‘som e a fúria’ da luta pelo poder, nas comunidades contemporâneas conduza a novos tipos de conflitos globais como os conhecidos desde a era napoleônica até a ‘segunda guerra de trinta anos’ do século 20. Nenhuma Realpolitik se exerce da mesma maneira depois que o gênio do poder nuclear saiu da garrafa. 

Aliás, a Realpolitik da atualidade tem um novo nome, superioridade tecnológica, e o cenário de seu desenvolvimento é a própria weltwirtschaft, a economia mundial, num mundo cada vez mais borderless, ou seja, sem fronteiras. Com efeito, assiste-se hoje em dia a um deslocamento de hegemonias, menos devido à força das canhoneiras do que ao peso dos navios cargueiros (a China, por falar nisso, possui os maiores portos do mundo). Mais exatamente, a tendência não é mais à constituição de rivais imperiais, mas ao estabelecimento de competidores mais eficazes, guerreiros de uma nova espécie, que buscam não tomar de assalto velhas fortalezas, mas inundá-las com pacíficos obuses eletrônicos, manufaturados segundo os mais modernos requisitos da tecnologia. 

Os cavaleiros mais dinâmicos dessa nova ordem mundial consideram os arsenais nucleares como catapultas pouco práticas do ponto de vista das modernas técnicas de conquista, da mesma forma que eles tendem a desdenhar os conflitos ideológicos como querelas teológicas de reduzido poder agregador: os hábitos de consumo unificam mais os povos, hoje em dia, do que as velhas crenças. Teutônicos ou samurais, mandarins ou gurus da nova era, os novos cavaleiros da economia mundial não buscam exatamente dominar ou converter outros povos, mas tão simplesmente extrair recursos pela via comercial. 

A estratégia econômica desses novos cruzados é verdadeiramente internacional, no sentido mais planetário do termo: busca de vantagens comparativas dinâmicas, rápido deslocamento geográfico de fatores, divisão racional de mercados, em suma, uma globalização acabada dos circuitos produtivos e de distribuição. A característica mais saliente dessa nova ordem mundial é a crescente interdependência dos países mais inseridos na economia de mercado. Mas, assim como na fábula orwelliana sobre a ‘igualdade’ na fazenda ‘socialista’ dos animais, nessa nova ‘fazenda capitalista’ das nações, alguns membros são mais ‘interdependentes’ do que outros. Não se trata apenas de saber quem é mais ‘transnacional’ nessa confraria, mas sim de determinar quem melhor sabe maximizar os mecanismos de controle da racionalidade instrumental própria à economia de mercado: o lucro e o investimento produtivo. 

Assim, se o “fim da História” – compreendido não no sentido de que o mundo estaria a ponto de se tornar um porto tranquilo para o exercício da democracia política, mas no do término da busca dos princípios fundamentais que devam reger a organização da sociedade – está ou não próximo de converter-se em realidade, esta é uma questão ainda em aberto. Uma alternativa política ao liberalismo ocidental não parece, em todo caso, perto de nascer. Isto não quer dizer que não existam alternativas práticas, reais, à democracia burguesa, como o próprio caso da China o demonstra. O que se pretende constatar é que o sistema chinês de dominação política não oferece atrativos para qualquer país que se pretenda ‘normal’ no quadro da interdependência contemporânea: ele simplesmente não constitui um modelo que possa ser replicado em caráter voluntário por outras comunidades políticas. Não fosse assim, a plutocracia chinesa não precisaria manter um formidável aparato de repressão, disseminar a censura pelos terrenos sempre fugidios da internet, condenar a condenar “dissidentes” e “violadores da legalidade” com o mesmo ardor – embora com menor brutalidade – que seus antecessores declaradamente marxistas-leninistas. A tese de Fukuyama, em seus contornos filosóficos, ainda não foi desmentida pelos defensores do ancien régime leninista. 

Em outros termos, a boa e velha democracia burguesa, em que pese algumas rugas vitorianas, ainda não parece ter sido vencida por alguma “contradição insanável”, do tipo das que costumavam frequentar o universo conceitual do marxismo clássico. Em contrapartida, no terreno da economia, o ‘fim da Geografia’ parece mais à vista, sobretudo quando se considera o escopo espacial das atividades empresariais. O mundo material está sendo progressivamente unificado por uma ‘cultura comum’, senão da abundância, pelo menos de consumismo, posto que jovens iranianos de uma das teocracias mais reacionárias que possam existir, jovens chineses do “socialismo de mercado” e jovens bolivarianos de um novo socialismo surrealista, todos eles desejam encontrar satisfação para padrões de consumo relativamente similares: filmes série B de Hollywood, fast-food, iPhone, iPod e internet. Quem fica de fora – cubanos, coreanos do norte – está louco para entrar… 

Esse processo de constituição de um borderless-world não deve ser confundido com o pretenso ‘declínio do Estado-nação’, tendência já desmentida pelo acelerado ressurgimento do ‘nacionalismo’ nos mais diversos quadrantes do globo. O que ocorre, mais exatamente, é uma combinação do policentrismo inter-estatal com a unificação dos espaços geoeconômicos, nos quais as competências estritas dos Estados nacionais no terreno econômico passam a ser exercidas por blocos de integração (zonas de livre comércio, uniões aduaneiras ou mercados comuns). Em todo caso, não parece haver muito espaço para o socialismo nesse “admirável mundo novo” do ‘fim da Geografia’. Ele só consegue sobreviver nas academias esclerosadas de certas faculdades de ciências sociais de universidades públicas de países periféricos, como mais uma demonstração de certas profecias corrosivas (como aquela de Millor Fernandes, que dizia que quando as ideologias ficam bem velhinhas, elas se mudam para certos países latino-americanos que conhecemos todos). 

Na prática, como as economias de mercado conseguem conviver com todos os tipos de regimes políticos, o que se tem é que o mercado e a democracia política convivem tranquilamente com esquemas diversos de controle social e de intervencionismo estatal, um pouco, aliás, como em diversos países periféricos do ‘capitalismo realmente existente’. Isso não representa exatamente um problema filosófico do ponto de vista das teses de Fukuyama: se a chamada ‘democracia burguesa’ conseguiu sobreviver durante tanto tempo, foi exatamente devido a seu caráter essencialmente ‘formal;, ou seja, uma democracia simplesmente política, destituída de qualquer conteúdo real, em termos de direitos econômicos ou sociais. Contudo, a simples garantia da igualdade jurídica e da liberdade individual representa, ainda assim, um enorme passo à frente no itinerário da sociedade civil, pelo menos para grande parte da Humanidade. É possível, assim, que a administração da ‘coisa pública’ nesses regimes híbridos que existem no mundo real seja uma tarefa tão ‘aborrecida’ e fastidiosa quanto, digamos, a atividade política em certas democracias avançadas do Ocidente, algo que já tinha sido percebido por um filósofo tão pouco hegeliano quanto Norberto Bobbio. 

O fato, porém, de que nenhum sistema social humanamente concebido poderá resolver a contento a questão da distribuição dos bens raros e socialmente valorizados – e a mercadoria ‘poder’ é a primeira a inscrever-se nessa categoria – garante que os palcos da História continuarão, durante muito tempo, a ser excitantes. Não há, aqui, nenhum pessimismo de princípio quanto a que, no terreno do mundo material pelo menos, se possa um dia realizar a conhecida utopia socialista: “de cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades”. Mas, é altamente improvável, conhecendo-se a natureza humana, que se possa cumprir, com ou sem ‘final da História’, a profecia engelsiana segundo a qual, no futuro, “o comando dos homens será substituído pela administração das coisas”.

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O "Fim da História" ou a Ideologia Imperialista da “Nova Ordem Mundial”.

Por Luiz Marcos Gomes

A grande maré capitalista que tomou conta do mundo, particularmente após a derrocada dos regimes estabelecidos nos países do Leste europeu e na extinta União Soviética, não significou somente a explosão das propostas neoliberais nos terrenos econômico e político. Implicou, também, uma ofensiva sem precedente da ideologia burguesa-imperialista visando à conquista dos corações e mentes em escala mundial. Uma das manifestações mais emblemáticas dessa ofensiva foi, primeiramente, o artigo, aparecido ainda em 1989, com o título "O fim da história" e, posteriormente, em 1992, o livro “O fim da história e o último homem”, ambos do norte-americano Francis Fukuyama1.

O esforço principal de Fukuyama, que tem provocado grande repercussão, foi o de tentar elaborar uma linha de abordagem da história, indo de Platão a Nietzsche e passando por Kant e Hegel, a fim de revigorar a tese de que o capitalismo e a democracia burguesa constituem o coroamento da história da humanidade, ou seja, de que a humanidade teria atingido, no final do século XX, o ponto culminante de sua evolução com o triunfo da democracia liberal ocidental sobre todos os demais sistemas e ideologias concorrentes.

Para ele, este século viu, primeiramente, a destruição do fascismo e, em seguida, do socialismo, que fora o grande adversário do capitalismo e do liberalismo no pós-guerra. O mundo teria assistido ao fim e ao descrédito dessas duas alternativas globais, restando apenas, atualmente, em oposição à proposta capitalista liberal, resíduos de nacionalismos, sem possibilidade de significarem um projeto para a humanidade, e o fundamentalismo islâmico, confinado ao Oriente e a países periféricos. Assim, com a derrocada do socialismo, Fukuyama conclui que a democracia liberal ocidental firmou-se como a solução final do governo humano, significando, nesse sentido, o "fim da história" da humanidade.

Fukuyama não contrapõe a chamada democracia liberal somente ao socialismo, mas também a uma miríade de regimes autoritários de direita que entraram em colapso e que, de acordo com ele, acabaram adotando, em maior ou menor grau, o modelo da democracia liberal. Na América Latina, aponta o caso das ditaduras na Argentina, no Brasil e no Chile. Na Ásia, lembra o fim do regime De Ferdinand Marcos, em 1987, e sua substituição peio governo de Corazón Aquino. Na África do Sul, cita a libertação de Nelson Mandela pelo governo de maioria branca de F.W. de Klerk e a busca de um governo de co-participação de brancos e negros. Tudo, segundo ele, com muitas variantes, mas sempre no rumo de um modelo de democracia liberal. Liberalismo, para Fukuyama, e o regime fundado, no terreno político, na democracia burguesa e, no terreno econômico, "no direito de livre atividade econômica e troca econômica, baseado na propriedade privada e nos mercados".

Em suma, ao longo do século a democracia liberal teria superado os "totalitarismos" de direita e esquerda, e também quaisquer outras variantes autoritárias, e triunfado como o regime mais adequado ao progresso e à liberdade humana. As propostas que restam hoje em contraposição à democracia liberal estão na defensiva, e representariam o conservadorismo e o atraso. Veja-se, por exemplo, diz Fukuyama, a situação dos países que permanecem socialistas, como China, Cuba, Coréia do Norte e Vietnã. Para ele, "embora o poder comunista persista no mundo, deixou já de refletir uma idéia dinâmica e atraente. Hoje, os que se dizem comunistas empenham-se numa luta contínua de retaguarda para preservar alguma coisa da sua posição e do seu poder. Os comunistas encontram-se na posição nada invejável de defender uma ordem social ultrapassada e reacionária, como os monarquistas que conseguiram sobreviver até o século XX".

Passando por cima da realidade histórica mais banal, Fukuyamama desconsidera o fato evidente de que o fascismo somente se explica se ligado intimamente ao capitalismo monopolista e às suas crises, da mesma maneira que o surgimento de um conjunto de regimes ditatoriais e fascistas na América Latina, no decorrer dos anos 70, foi a expressão política da forma de desenvolvimento capitalista ocorrida nesses países. (Ou seja, foram regimes que sufocaram a democracia burguesa, reprimiram os movimentos populares, recorreram à tortura como método normal de ação, tudo para garantir a acumulação capitalista num modelo de desenvolvimento associado ao capital financeiro internacional que, por seu lado, garantiu a esses países o apoio político necessário.) O que seria da ditadura militar brasileira, que operou um dos mais famosos ciclos de expansão capitalista na periferia, entre fins da década de 60 e começo dos anos 70, período conhecido como "milagre brasileiro” sem o incentivo e o suporte dos Estados Unidos (inclusive na preparação e desencadeamento do golpe militar)?

No complexo processo de desenvolvimento capitalista, a concorrência se transforma no seu contrário, o monopólio, da mesma forma que a democracia burguesa se transforma na ditadura fascista, num regime policial de terror, onde o capital monopolista finalmente consegue implementar as mudanças a ferro e a fogo para romper a crise e reiniciar um outro ciclo de expansão. Senão, como explicar os regimes fascistas surgidos na Itália, Alemanha e Japão, após um período histórico de crises vivido por todos esses países? Em seguida, essas potências capitalistas "renovadas" aguçam suas contradições com as "antigas" potências dominadoras do cenário mundial, surgindo, então, os conflitos mundiais como a 2a Grande Guerra, que, de início, não foi mais do que uma guerra imperialista pela repartição do mundo, uma guerra pela disputa de mercados, de colônias, de zonas de influências. Fukuyama parece ter tanto receio e dificuldade de encaixar o nazi-fascismo em sua teoria que tenta apresentá-lo como uma espécie de pesadelo característico de uma época específica, que dificilmente se repetirá.

É uma de suas afirmações mais gratuitas e perigosas, pois é como se quisesse se livrar rapidamente do monstro fascista apenas fazendo uma profissão de fé de que se trata de fenômeno histórico isolado e superado, e não de uma ameaça permanente que pode ressurgir das entranhas de seu liberalismo baseado na propriedade privada e nos mercados. Diz ele sobre a Alemanha nazista: "Inclino-me a aceitar o ponto de vista de que o Holocausto foi tanto um mal único quanto o produto de circunstâncias históricas também únicas, que convergiram na Alemanha nas décadas de 1920 e 30. Essas condições não somente não estão latentes na maioria das sociedades desenvolvidas como também seria difícil (embora não impossível) reproduzi-Ias em outras sociedades no futuro".

No fundo, o que Fukuyama quer nos impingir é a idéia de que a humanidade já estaria livre de fenômenos como o nazi-fascismo, uma vez que esse tipo de barbárie não mais seria condizente com o estágio atingido pela humanidade na pós-história. Sua teoria não é mais que uma completa falácia para um mundo dividido entre exploradores e explorados, entre nações super-ricas e superpobres, no qual a massa dos excluídos dos frutos do progresso e da civilização se conta aos bilhões, ou seja, um mundo em que as bases objetivas para o surgimento de regimes terroristas e de guerras interimperialistas continuam dadas. Além disso, basta olhar, por exemplo, o aumento da onda fascista em países como a Alemanha e a França, que enfrentam situações de crise e de desemprego, e onde crescem as agressões e os atentados contra os migrantes pobres, vistos pelos neofascistas como praga perturbadora ao projeto de uma Europa rica e próspera (evidentemente não para todos que hoje vivem lá, mas somente para alguns "escolhidos" em função de sua nacionalidade ou etnia). Para dar consistência filosófica às suas teses, Fukuyama foi buscar em Hegel os fundamentos para sua teoria do "fim da história". Hegel acreditava num direcionamento da história da humanidade no sentido da evolução e do progresso. Para ele, a história humana era a realização progressiva da sua "idéia absoluta". Ao mesmo tempo, Hegel acreditava que haveria um "fim da história" - não no sentido de que, com a construção de uma sociedade superior e livre, a história da humanidade iria terminar, pois ela seria a manifestação da realização plena da "idéia absoluta". Fukuyama se apóia nessa concepção e no fato de Hegel considerar que a "história" havia terminado em 1806, depois da batalha de Iena, com a vitória de Napoleão sobre os prussianos.

Com isso, segundo Fukuyama, "Hegel estava dizendo que os princípios de liberdade e igualdade, bases do Estado liberal moderno, haviam sido descobertos e postos em prática na maioria dos países adiantados, e que não havia princípios ou formas de organização social e política alternativas superiores ao liberalismo".

Pode-se até compreender, do ponto de vista histórico e dentro da tradição dos grandes sistemas da filosofia clássica alemã, a perspectiva de Hegel, que conduziu a filosofia idealista a um de seus ápices. Hegel, como todos os filósofos de seu tempo, recebeu os poderosos influxos da Revolução Francesa de 1789, que efetivamente descortinou novos horizontes para a humanidade, ao derrubar a monarquia e o feudalismo. Napoleão, por seu lado, representou, para a intelectualidade progressista da época, a possibilidade de estender as conquistas da Revolução Francesa aos países da Europa ainda controlados por forças feudais e retrógradas. Assim, ao derrotar, em 14 de outubro de 1806, os prussianos nas batalhas de Iena e Auerstadt, os exércitos napoleônicos destruíram o ancien regime na Alemanha. Repetimos ser compreensível o sentimento de Hegel a respeito desses acontecimentos, que revolucionaram a ordem nacional e mundial da época. A burguesia ainda era uma força revolucionária triunfante e liderava as transformações sociais. O proletariado ainda não havia entrado em cena, não havia ainda elaborado a sua própria concepção política. Era difícil conceber uma igualdade melhor do que a burguesa. O ponto de partida não era o regime capitalista (e sua crítica), mas o regime feudal.

Quase trezentos anos depois, no entanto, é completamente anacrônica a repetição dessas idéias, fenômeno só explicável por esse verdadeiro "porre" de ideologia capitalista que explodiu após a derrocada do Leste europeu. Como apregoar a excelência do capitalismo e da democracia liberal, se deles estão excluídos mais de dois terços da população do globo terrestre? Como tomar como coroamento da história da humanidade um regime que acirra as contradições sociais no interior dos países que mais encarnam o liberalismo, como os Estados Unidos? Como tomar como paradigma para a humanidade um sistema de vida que não pode ser estendido ao conjunto da população mundial?

O padrão de vida vigente nos países capitalistas adiantados só é possível em virtude de estar restrito a uma minoria. Como observa o historiador inglês Perry Anderson3, o privilégio de uns poucos requer a miséria de muitos, para ser sustentável. Segundo ele, "menos de um quarto da população do mundo detém atualmente 85% da renda mundial, e a diferença entre as participações das zonas avançadas e atrasadas ampliou-se ainda mais nos últimos cinqüenta anos". E observa que "nos anos 80, mais de 800 milhões de pessoas - mais do que as populações da Comunidade Européia, Estados Unidos e Japão somadas - tornaram-se ainda mais excruciantemente pobres, e uma em cada três crianças passava fome".

O que se pode ver e que o sistema capitalista - essa fantástica acumulação de riqueza nas mãos de uma parcela cada vez mais reduzida - está levando ao paroxismo a marginalização e as desigualdades sociais. Nos Estados Unidos, as manifestações explícitas de crise social - como os conflitos ocorridos em Los Angeles em abril e maio de 1992 - são de assustar os mais otimistas, exceto Fukuyama, que não entra na análise dessas questões, e prefere repetir a tese fácil de que tudo isso é simples acidente de percurso numa sociedade como a norte-americana. Mas não é o que os fatos revelam. Atualmente, cerca de 36 milhões de pessoas nos EUA (ou 14,7% da população total) vivem na pobreza4. Esse percentual era de 11% em 1970. Esse crescimento é resultado de um conjunto de fenômenos como crise econômica, desemprego, mudança do perfil tecnológico da indústria e anos seguidos de administração republicana (governos Reagan e Bush). Esta, de acordo com o receituário neoliberal, reduziu drasticamente os recursos destinados a programas sociais. O impacto dessa crise sobre a população pobre e negra é impressionante, com suas seqüelas de desagregação familiar, aumento do consumo de drogas, disseminação de doenças como a Aids e aumento da criminalidade.

Esse caldeirão de repente explode, como aconteceu na cidade de Los Angeles em 1992. Os distúrbios sociais se seguiram à absolvição, por um tribunal integrado por brancos, de um grupo de quatro policiais brancos que haviam agredido um negro, em março. Os protestos contra o veredicto se transformaram numa onda de saques e destruição generalizada. Após alguns dias, foram computados os resultados: 58 mortos, mais de mil prédios destruídos, prejuízos de mais de 1 bilhão de dólares. Os analistas procuraram mergulhar nas causas dessa tremenda crise e mostraram um país profundamente dividido entre ricos e pobres, entre brancos e negros, entre os ricos e prósperos subúrbios das grandes cidades e os seus centros miseráveis e deteriorados, entre a abundância e a pobreza. O capitalismo norte-americano há muito deixou de oferecer emprego e renda suficientes para a população. Estudos mostram que, de 1947 a 1973, a renda familiar nos Estados Unidos aumentou em 111%; nos últimos dezesseis anos, ela só cresceu 9%. Em 1970, 40% das famílias mais pobres recebiam 17% da renda nacional, enquanto os 20% mais ricos ficavam com 41%; em 1988, a participação dos estratos mais pobres reduziu-se a 15% da renda nacional, e a dos mais ricos elevou-se a 44%S. Essa face cada vez mais visível do capitalismo (mesmo em países do centro do sistema, como os Estados Unidos), ou seja, a acumulação excludente, que marginaliza parcela cada vez maior da população, para a qual o capitalismo não oferece nenhuma alternativa concreta, não merece a menor consideração por parte de Fukuyama.

Já dissemos que Fukuyama, manipulando idéias sobretudo de Platão, Hegel e Nietzsche, procura elaborar uma base filosófica para a sua tese de que a democracia liberal é o coroamento da história da humanidade. E um dos aspectos de seu livro que merece a maior atenção é aquele em que procura justificar a origem e a manutenção das desigualdades sociais entre os homens e as nações, resgatando idéias que justificam a dominação do homem pelo homem e que estão na essência da ideologia fascista. Mas talvez onde o fascismo de Fukuyama fica mais explícito é na parte em que ele analisa a questão da ordem internacional no mundo contemporâneo.

Segundo sua teoria, hoje o mundo está dividido entre os países capitalistas avançados, que representariam o "Estado universal homogêneo", e os demais países que ainda não atingiram esse estágio e que, na verdade, seriam os representantes da barbárie, significando uma ameaça para os primeiros. Ora, se a "barbárie" ameaça a "civilização", ou, para usar a terminologia mais velada de Fukuyama, se o "mundo histórico" ameaça o "mundo pós-histórico", então está criada a justificativa do uso da força por este último, para se defender legitimamente do primeiro. Ele aponta pelo menos dois terrenos de colisão clara entre esses mundos: o do petróleo e o da imigração. Diz que "a produção de petróleo continua concentrada no mundo histórico e é crucial para o bem-estar econômico do mundo pós-histórico". Por isso, ele prevê e justifica novos conflitos como a intervenção imperialista no Golfo Pérsico. No outro terreno, será necessário "conter a maré" caracterizada pelo enorme fluxo de migrantes que está indo de um mundo para outro.

A conclusão de Fukuyama é a de que a "força" continuará a ser a razão final nas relações entre esses dois mundos, ou, para usar uma de suas expressões, entre "democracias e não-democracias". E para reger essas relações, ele ataca e rechaça organismos como a ONU, que não seria uma sociedade de "nações livres", mas um ajuntamento que mistura estas últimas com ditaduras, que aceitou a "União Soviética de Stalin" inclusive com poder de veto em seu Conselho de Segurança, e aceitou também "Estados novos do Terceiro Mundo que compartilhavam pouco dos princípios liberais"...

Por tudo isso, segundo ele, na nova ordem internacional criada após o fim da guerra fria, uma liga das nações "teria que se parecer mais com a OTAN do que com a ONU (Nações Unidas) - isto é, ser uma liga de Estados realmente livres, unidos pelo compromisso comum com os princípios liberais". E completa: "Essa liga seria muito mais capaz de uma ação decisiva para proteger a segurança coletiva contra as ameaças vindas da parte não-democrática do mundo".

Eis a receita final descarada desse novo doutrinador da ideologia imperialista: quer uma "nova ordem mundial" inteiramente controlada por entidades como a OTAN, organização nascida do agressivo pacto militar firmado pelos países capitalistas avançados após a 2a Guerra Mundial para conter o avanço do socialismo.

Dessa forma, os países que representam e encarnam o "fim da história", os "países democráticos" da "pós-história" - na verdade, as atuais potências imperialistas, com os Estados Unidos à frente - ficariam de mãos livres para agir em defesa de seus interesses e perpetrar barbaridades, tudo em nome da "humanidade" e da "civilização". Onde está a diferença em relação ao fascismo? É um discurso antidemocrático, anti-socialista e agressivo, que, às vezes usando uma linguagem rebuscada, reflete o triunfalismo e a agressividade da ideologia capitalista após a derrocada do Leste europeu e da União Soviética. O livro de Fukuyama, além disso, não analisa e não derruba nenhum ponto essencial do pensamento socialista a respeito do capitalismo e da evolução histórica da humanidade. O ponto de partida do socialismo científico sobre o capitalismo e o de que este último é um regime fundado na exploração do homem pelo homem, da burguesia sobre o proletariado, sob a forma da apropriação da mais-valia, a forma especificamente burguesa de apropriação do trabalho não pago. Enquanto persistir essa relação de dominação, não se pode falar em libertação do homem. Como disse Marx, a produção capitalista significa a dominação do capitalista sobre o operário, a dominação da coisa sobre o homem, do trabalho morto sobre o trabalho vivo, do produto sobre o produtor. "Na produção material, no verdadeiro processo da vida social - pois o processo de produção é isso - dá-se exatamente a mesma relação que, no terreno ideológico, se apresenta na religião: a conversão do sujeito em objeto e vice-versa."

Esse modo de produção, que está condenado a produzir e reproduzir permanentemente tal relação social, não conduz nunca à liberdade, mas à opressão e à alienação. Essa cadeia precisa ser rompida, ou seja, os trabalhadores têm de rompê-la para se após sarem das condições de produção de sua vida material e se libertarem. Sem destruição do capitalismo, não existe o reino da liberdade, que não será o "fim da história", mas o início de uma nova era na história da humanidade. O socialismo significa um primeiro passo na superação do capitalismo e um avanço em direção ao comunismo, a uma sociedade sem classes, uma sociedade altamente desenvolvida e igualitária - não porque os homens estejam formalmente iguais em direitos e deveres, como na sociedade burguesa, persistindo entre eles a desigualdade econômica básica, fruto da exploração de uma classe por outra - mas precisamente porque as classes serão abolidas, restando apenas as diferenças individuais entre as pessoas. Nas palavras de Engels, o homem, ao tornar-se dono e senhor das suas próprias relações sociais, converte-se, pela primeira vez, em senhor consciente e efetivo da natureza. "Os poderes objetivos e estranhos que até aqui vinham imperando na história colocam-se sob o controle do próprio homem. Só a partir de então ele começa a traçar sua história com plena consciência do que faz. E só daí em diante as causas sociais postas em ação por ele começam a produzir, predominantemente, e cada vez em maior medida, os efeitos desejados. É o salto da humanidade do reino da necessidade para o reino da liberdade'." A partir daí, pode-se falar não no "fim da história", mas num verdadeiro "começo da história" para a sociedade humana.

A evolução da humanidade em direção ao reino da liberdade não se interrompeu neste final de século, marcado por tantos acontecimentos trágicos e por um aparente triunfo final do capitalismo. O historiador E. H. Carr faz uma reflexão no sentido de que a história vem sempre avançando, mas o! Prova que ninguém jamais acreditou num tipo de progresso que avançasse numa linha reta contínua, sem reveses ou desvios. Ele diz: "Há, nitidamente, períodos de regressão e períodos de progresso". Assim, este final de século poderia ser descrito como um período de regressão, de desvio, que não deve nos levar a perder o rumo do horizonte histórico da humanidade.

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